Contemplar



Dez anos de idade. Não consigo ser mais específico, embora eu queira. A memória não permite. Na verdade, não há muita necessidade de saber isso, além de poder ter você, leitor, inserido no contexto. Então é isso: dez anos de idade e alguns meses. Um moleque. Eu era isso e nada mais. Um garoto que, assim como os outros de sua idade, está pronto a todo instante para arranjar algum problema; desde os pequenos até os colossais. Mas nessa ocasião não era nada grave, então não se empolgue.


Estou na cozinha, aproveitando que minha mãe me deixou sozinho. Afinal, eu já era um rapazinho responsável. Sabia me comportar. Mas ali estava eu, mexendo no armário das panelas, procurando pelo recipiente perfeito e que seria utilizado em minha saga: me tornar um cozinheiro de mão cheia. Na verdade, eu apenas queria comer brigadeiro, mas minha mãe disse que não faria. Justo. Aceitei isso. Mas eu ainda queria o brigadeiro, e sabia, na teoria, como fazê-lo. Os ingredientes estavam ali. Só precisava encontrar aquela panela.

Uma mexida aqui e ali, a bagunça estava pronta. O som de aço se chocando contra mais aço não era tão alto, pois eu me esforçava para não acabar com a paz. Sabia que um movimento em falso levaria a calma embora. Mas, como já ressaltava aquele antigo adágio da cultura ocidental, se algo possui a mínima chance de dar errado, vai dar errado. E, de quebra, da pior maneira possível. Um leve descuido de minha parte e as panelas foram ao chão. O som foi enorme. Os dois cães, que se encontravam na casa vizinha ao prédio onde eu morava, começaram a latir. Pronto. Era justamente o que eu estava evitando. Adeus, paz. Por outro lado, eu havia encontrado a panela. Algo de bom, enfim. Peguei o material e fui para o fogão. Acendi o fogo e comecei a praticar minha doce alquimia. E fiquei ali por alguns minutos, procurando apenas observar a mistura daqueles dois elementos místicos, conforme eles começavam a tomar a forma esperada. O momento estava chegando. Restava a mim apenas contemplar aquele feito artístico. Nada podia me impedir de aguardar o momento certo. Os cachorros, que ainda insistiam em latir, não podiam. Tampouco o pensamento de que eu precisaria acabar com aquilo antes de minha querida mãe voltar para casa. Nada parece importar quando você se concentra em alguma coisa. Ainda que a vida continue, a felicidade está naquele pequeno detalhe que antecede toda a expectativa de uma alma perdida nesse mundo insano.

Dezesseis de Maio de 2015. Oito dias para eu ficar mais velho, e isso me preocupa. Não sei dizer bem o porquê, mas, talvez, pelo sentimento de estar alcançando uma determinada idade e ter a impressão de que ainda não fiz nada de útil para o mundo. Eu entendo que cada um tem o seu ritmo, mas como pode alguém progredir tão lentamente quando a contemporaneidade exige que  andemos rapidamente. Seja dinâmico. Faça isso. Pegue aquilo. Não pare. Pense. Não, não pense, apenas faça. Não perca tempo. Corra para pegar o ônibus. Não esqueça o seu compromisso. Não se estresse. O que é isso? Você está se sentindo mal? Febre? Está ficando fraco? Pois que assim seja, o tempo não irá parar para você, então trate de se entupir de remédios e volte a correr. Você não quer ficar para trás, quer? Por que você está chorando? Ande. Corra. Pule. Agache-se. Arraste-se. Fuja. Lute. Defenda-se. Mova-se. Não fique aí parado, seu monte de merda. A vida é isso que acontece enquanto você está aí reclamando – infelizmente, Lennon, sem tempo para planejar. Surtar? Você não tem esse direito. Ainda se sente mal? Eu não posso fazer nada, mas você pode escolher desistir. Durma. Acorde. Durma acordado. Acorde dormindo. Sonhe de olhos abertos. Não deixe os pesadelos te alcançarem. A vida é o seu pesadelo? Jogue-se do sexto andar, talvez isso resolva seu problema. Já. Agora. Vai. Não perca tempo. Faça isso. E aquilo. Vai embora. Saia antes do sol nascer. Não olhe ao seu redor. Para a frente sempre. Continue andando. Isso, bom garoto. Tome uma pequena bonificação. Agora continue.

Estação Botafogo. Entrei no vagão. Sentei-me em um dos bancos. Aguardei até que o metrô saísse e eu tomasse o rumo de casa. Refleti sobre a correria cotidiana e sobre os poucos momentos que dispunha para relaxar. Aquele era um deles. E então, a minha mente, antes desprovida de qualquer cenário, retoma a imagem do dia anterior. Da aula na faculdade onde discutimos brevemente sobre um poema que, de alguma forma, se tratava sobre isso. Eu não havia conseguido decorá-lo, mas uma parte dele, uma parte da alma de Robert Frost, permanecia tatuado em minha alma. And miles to go before I sleep. A caminhada era longa, e eu precisava me preparar para tudo o que estava por vir. Mas naquele instante, eu queria apenas olhar. Observar. Contemplar. Apreciar. Admirar. Respirar. Sentir um pouco da vida que vem correndo pelas minhas veias.

A pintura em detalhes: estou sentado entre uma moça e um rapaz. A primeira coisa que noto é a música que o jovem ouve. Ainda que com fones de ouvido, posso escutar a batida comum a todas as músicas do funk carioca. Ele move a cabeça no ritmo, aproveitando a música. Ele é o estereótipo do funkeiro do Rio de Janeiro. E então, quando eu menos espero, vejo ele tirar de sua mochila uma revistinha e uma caneta. Revista Coquetel. Caça-palavras, Sudoku, Palavras Cruzadas e coisas do gênero. Eu arqueio a sobrancelha levemente, num estado de surpresa. O meu pré-conceito (favor, leitor, não confundir com preconceito, embora ambos sejam muito semelhantes em essência) se revelando, ainda que só para mim. Eu, de fato, não esperava que aquele indivíduo fosse fazer aquilo, pois não era algo comum. Eu fui pego de surpresa e achei divertido. Interessante. Fora do comum. E então comecei a me questionar: isso é tão anormal assim, ou eu que nunca percebi? Julgar sem conhecer me parece ser uma característica dos ignorantes no incomum hábito da observação.

Do meu lado direito, estava a moça. Que conclusão poderia tirar sobre ela? Por volta dos quarenta anos, mas sem ter muitos traços de estar envelhecendo, até onde pude perceber. Um leve odor de cerveja estava impregnado nela, mas não parecia estar bêbada. Se estivesse, ao menos estava mantendo a classe. Independentemente disso, era capaz de jogar seu joguinho de celular sem qualquer dificuldade. Havia tanta coisa ao redor dela. Tanta beleza não notada. Coisas que ela não via, e percebi que isso era um padrão.

Após isso, botei meus headphones e liguei a música. Não posso ser hipócrita, pois também gosto do meu celular.  Mas, em vez de olhar para a tela, decidi olhar o que me cercava. No Catete subiu uma moça muito bonita. Usava seu casaco vermelho e uma camisa branca, junto de uma bermuda simples. Ela também era adepta ao celular dela, e isso a impossibilitava de ver o rapaz que, do lado oposto do vagão, a devorava com os olhos. Não o culpo. Ela era linda, e o jeito como ele a cobiçava não parecia demonstrar qualquer interesse sexual – ao menos a princípio. Era apenas o mais simples e puro interesse, sem maldade. Bem, sem muita maldade. Era engraçado o jeito como ele afastava o olhar para outros lugares, mas sempre voltava ao que eu nomeava “ponto de origem”. Por um tempo, permaneci observando aquele relacionamento platônico que ocorria. E era lindo. Mas também era triste. As complexas e fatídicas paixões de transporte público. Tão sublimes em suas respectivas simplicidades; as eternidades que duram um segundo na mente de outro. Você já parou para reparar como isso é profundo? Aposto que não. Mas é lindo, de algum modo. Emocionante. As estradas que nunca serão tomadas ganhando vida no brilho dos olhos de alguém interessado. E essa mesma vida é dizimada no próximo ponto, quando um dos dois retorna à sua vidinha ordinária. Então, minhas reflexões são abordadas por uma espécie de paródia que imediatamente fiz de Frost – novamente ele: Two roads diverged in a subway station/And I felt sorry for him, whom could not travel both.

Falando de paixão, dois casais se encontravam no mesmo vagão. Ambos me chamaram atenção, cada um a sua maneira. O primeiro, mais distante, só me remetia a certas lembranças. O jeito como o rapaz a abraçava com força, e a garota correspondia, fazia com que eu pensasse em determinadas coisas. Determinadas pessoas. Ou pessoa. Mas isso é assunto para outro texto. E eles ficaram ali, com suas felicidades finitas. O outro casal estava na minha frente, ocupando os outros bancos. A garota se sentava de uma maneira meio despojada, com as pernas jogadas sobre as do namorado. Ela, encolhida, era afagada pelo rapaz. Era uma moça loira, cabelo curto e de óculos. Muito bonita. E, em certo momento, ela me flagrou. Seu olhar cruzou o meu. Naquele breve segundo, ela abriu um meio-sorriso. Meio constrangido, meio irônico. Não era um olhar malicioso e traidor – ao menos minha auto-estima não me permite acreditar no contrário. Era apenas um olhar de quem entende. Um olhar de que compreendia minha atitude. Julguei que ela poderia ser uma exímia contempladora nas horas vagas, pois ela sabia o que eu estava fazendo. Mas nosso pequeno contato terminou logo, uma vez que ela desviou o olhar. Bocejou e se acolheu ainda mais nos braços do namorado, que beijou sua cabeça. Por um momento senti uma pontada de inveja. Sem necessidade de mentiras aqui.

Ainda nos casais, preciso ressaltar um senhor e uma senhora que deveriam estar na casa dos cinquenta anos. Entraram na estação da Cinelândia. Possivelmente casados, já que ambos estavam de alianças. Embora não se beijassem, era admirável o modo como ele a segurava para que não fosse derrubada pela força da inércia. E o modo carinhoso como trocavam olhares apaixonados, carregando anos e anos de uma história particular que não os deixavam desgastados. Além deles dois, havia outra garota, que comprava um pequeno colar artesanal de um rapaz de dreads. O objeto tinha uma pedra azulada, e ela a admirava com cuidado. Talvez fosse um presente para alguém. Um amor? Uma amizade? Um prêmio para o ego?

A viagem segue. Estácio chega. É dia de fazer transferência. Pego o outro metrô. Naquele vagão, apenas duas pessoas me interessam. O primeira é um indivíduo que distribui panfletos, perguntando a todos se gostam ou não de poesia. Eu recuso. Meu caso com a poesia é complicado. Eu gosto, mas não gosto. Sempre digo que acho interessante, mas que é louco demais para mim. No fundo, sei que não é isso. Apenas tenho medo de assumir que alcancei um patamar de insensibilidade tão alto que não sou capaz de desfrutar da forma mais simples de arte; a forma que evoca a essência da vida. Entretanto, uma senhora negra ao meu lado aceita. De soslaio, observo alguns poemas. Ele é bom, mas todos os seus trabalhos são tão politizados. Nada de errado com isso, mas é que soa tão artificial. Os poemas dele são críticas. Críticas interessantes. Críticas típicas desses pseudo-intelectuais que tanto me incomodam. Mas cada um sabe o que faz de suas vidas. Afinal, quem sou eu para julgar?

Por fim, uma moça entra na estação Maracanã. Ela quer chorar. Seus olhos vermelhos, as constantes vezes em que levou a mão aos olhos os enxugando e as fungadas a entregam. Mas ela é forte. Ela é resistente. Não que isso faça diferença, pois ninguém parece perceber isso. Todos estão presos em seus mundos digitais. Ninguém além de mim, que naquele instante escutava a música Overdose, de Raleigh Ritchie, parecia ter a empatia necessária. Minha vontade era de levantar, ir até ela, abraçá-la e dizer que tudo ficaria bem. Ela precisava disso. A força dela para não chorar em público a corroía por dentro. Como eu sabia disso? Bem, eu passo por isso. Há tempos que experiencio tal sensação, então sei como dói. Contudo, eu calo meu impulso. Concluo que é melhor deixar que ela fique com as lágrimas omitidas. Dói meu peito vê-la naquela situação e não poder ajudá-la, mas ela ainda é uma estranha. Não seria muito ético. O que os outros pensariam? Mas, por outro lado, estavam tão absortos em suas vidas medíocres – no sentido não pejorativo da palavra – que talvez nem se tocassem.

E, após todos os detalhes sublimes que a vida me proporciona, eu raciocino sobre a música que tocava em meu celular. Era muita coincidência para ser verdade. Overdose, overload, over-time/We overflow, we should try and go outside/Cause if we don’t, we’ll overgrow and overdose/Just overdose, it’s over when we overdose. Talvez a conotação da canção como um todo não tenha a ver com o que eu sentia, mas era apenas daquilo que eu precisava. Era aquilo que me tocava. E, por alguns minutos, o ar que eu inspirava parecia carregado de uma energia surreal. Cada vida que se encontrava perto de mim trazia consigo uma espécie de sentimento incompreensível. Tantos detalhes a serem percebidos, mas sem ter quem os perceba. Tantas aventuras a serem contadas, mas sem ter quem as ouça. Tantas dores a serem compartilhadas, mas sem ombros amigos para ajudar a carregar o fardo. Tantas histórias a serem escritas, mas sem um autor de vidas. Tanto prazer, tanta dor. Tantas almas, tão pouco tempo.

Decidi, naquele instante, em me concentrar nas lindas florestas que pairavam a minha frente. Diante o esplendor da escuridão e da profundidade dessa mesma floresta, pus-me a esquecer momentaneamente das promessas que eu tinha de manter.

Não pensei nas milhas a percorrer.

E eu juro que por um milésimo de segundo alcancei o nirvana. Um arrepio que se sucedeu em todo meu corpo. Uma paz inexplicável.

Infelizmente, acabou. E então eu me toquei. Percebi as inúmeras coisas que estão acontecendo a minha volta e que não paro para analisar. O mundo é cheio de belezas e tristezas que ninguém se dá ao trabalho de registrar. De conquistas e perdas. Parece louco, mas você quer a prova de que isso acontece?

Fevereiro de 2014. Não me recordo o dia. Estava naquela mesma cozinha. Estava guardando a louça do almoço, incluindo algumas panelas. Voltei ao armário. O mesmo armário. Como uma espécie de deja vu, deixei as panelas caírem. O som já conhecido se propagou pelo ar. Suspirei profundamente, aguardando pelo o que viria. Os latidos que retirariam minha paz.

Ah! Os cachorros. Aposto que você esqueceu da existência deles. Não se sinta culpado. Eu também esqueci.

Os latidos não surgiram.

Um estranho estalo se deu em minha mente.

Fiquei estático, sem saber o que fazer. Estado de choque. Eu não havia percebido, até então, pois a vida dinâmica não me permitira dar atenção aos míseros detalhes, que agora tomo como importantes. E, sentindo um frio descer pela espinha, eu começo a me indagar, assustado com aquela perspectiva:

Quando os dois cachorros morreram?

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